Tarde
de domingo, dia 19 de maio de 2013.
Racionais
no palco Júlio Prestes, Virada Cultural, cidade de São Paulo. Eu estava lá...
Sem
conseguir ver o chão e à custa de muitos pedidos de licença, cedidas sem muito
custo, me desloco em meio à multidão reunida. A maioria ali presente ainda se
parece comigo: na cor da pele, na qualidade do cabelo, no jeito de olhar, na
euforia e ansiedade percebidas pelos rápidos olhares que se cruzam. Ali o olhar
não encontra pouso em ninguém, não se demora em ninguém, ninguém encara ninguém
ali.
Escolho
um lugar na Ágora. Posiciono-me, esfrego uma mão na outra, não por frio, mas
como que avisando ao corpo o que o coração-cérebro já sabia: chegou. Chegou o
dia, está chegando a hora... Em alguns minutos começará o show dos Racionais
Mc`s na Virada Cultural... O que para mim não era novidade, desde 95, data de
quando lá na favela do Zaíra 2, Mauá, SP, conheci o som que mudou e salvou
minha vida, já fui a um sem número de apresentações deles, mas aquela tarde era
diferente, fazia muito tempo que não via o grupo inteiro reunido, faziam seis anos da última apresentação a céu aberto na
cidade de São Paulo, eu precisava estar lá, como estava há seis anos atrás na
outra Virada, com tenho estado desde 95, sou mais um... Para mim, desde os
tempos de menino, e durante a adolescência, o show dos Racionais era e foi o
único lugar onde política era discutida, política esta que me interessava, que
fazia sentido para os meus olhos de menino, em começo de vida. As questões
raciais sempre foram pauta nas músicas, a denúncia de que criminalizavam e de
que criminalizam, até hoje, a pobreza, sempre esteve presente, as execuções
sumárias, travestidas de autos de resistência pela polícia militar, sempre
foram narradas da forma mais vertical e legítima por eles... Eles falavam de
mim, do meu cotidiano, dos meus amigos, da minha família, do meu Zaíra, da
minha favela, sem ao menos me conhecer... Pois sabiam que “periferia é
periferia em qualquer lugar”, que a pobreza material não é muito diversificada,
não se camaleoa por aí, e sabiam também que o trato político dado a ela também
se assemelha em todos os lugares do mundo... E era desta forma que o show se
transformava em uma gigante Ágora, maior até que a dos gregos em quantidade de
pessoas... E talvez em silêncio obtido por um orador... Estamos falando aqui de cem mil pessoas
reunidas ou mais...
Sou
testemunha ocular de um fato ocorrido em um show dos Racionais em Mauá, na
quadra da escola de samba do São João, em 2005. Era época do plebiscito acerca
da detenção do porte de arma. Mano Brown em um determinado momento da
apresentação propôs um debate entre duas pessoas do público, uma era a favor da
legalização da venda de armas de fogo para civis, outra contra. Pois ele sabia,
como é agora o caso das propostas de redução da maioridade penal, que nós,
negros, pobres, da periferia, seriamos os mais prejudicados com tal aprovação e
defendeu seu posicionamento ali, publicamente, em debate aberto. Que outro artista
teve atitude semelhante? A Ágora estava efetivada e não apenas simbolizada.
O clima na cidade está tenso nessa tarde, no local do
show um contingente policial muito maior do que o presente nos outros eventos.
O metrô reforçara a segurança nas estações que davam acesso ao local. Sim, é
explicito, é regra, é praticado e é fato: a polícia sempre opera com a lógica
da guerra, do extermínio, e em um show dos Racionais então, é como se o inimigo
“cor padrão”, alvo histórico predileto, tivesse marcado um duelo em praça
pública... E lá estavam eles, na hora marcada, rijos, cheios de calibres em
punho, prontos para fazer valer novamente a detenção da legitimidade do uso da
força. E lá estávamos nós também, na hora marcada, cheios de crianças em punho,
olhos arregalados e fixos no palco... O KL Jay já estava lá, com seu
vinil-escudo, com seu sorriso largo, bonito, contagiante e desavergonhado...
De
cenário, no fundo do palco, elevada, uma bandeira com um rosto de palhaço
macabro, de olhos vermelhos, atrás dele, algo insinua o contorno do estado de
São Paulo... Forrando o alicerce e a mesa que sustenta as pick-ups do Dj KL
Jay, um pano preto escrito: “RACIONAIS” em cinza, igualzinho está na capa do CD
“Sobrevivendo no Inferno”, com a mesma fonte, iluminado por luzes vermelhas.
Por
volta das 14h e 30min, avisto uma bandeira enorme, preta e laranja, surgindo de
uma rampa lateral que dá acesso ao palco. É possível ler na bandeira: “Vila
Fundão”. A bandeira é do time de futebol da Vila que Mano Brown imortalizou em
um de seus versos, faz parte da música “Da ponte para cá”, do álbum “Nada como
um dia após o outro dia”. Era o restante do grupo que chegava: Mano Brown, Edi
Rock e Ice Blue. Os Racionais Mc`s estava completo e o KL Jay ao ouvir o nosso
barulho, comemora a chegado dos parceiros. Junto aos três que sobem a rampa,
muitos outros acompanham o grupo, eles formam, dessa maneira, uma espécie de
time, de equipe, de comunidade, a coletividade está colocada e presente, não só
no público, mas, sobretudo, na ação dos músicos. Todos, com exceção do KL Jay,
ou estão de camiseta laranja, ou com algum elemento laranja no figurino,
inclusive Mano Brown, que veste um boné laranja,
com um “B” no centro.
Às
14h e 40min, para minha surpresa, encontra meus ouvidos um efeito de voz similar
ao presente na faixa “Vivão e Vivendo” do álbum acima citado, só que com um
timbre um pouco mais grave. Quem fala através dele é Mano Brown, que saúda o
público e adentra o palco ao som de “Da ponte para cá”, do mesmo CD citado
anteriormente. Começou... Meu corpo sente, o cérebro obedece ao estímulo e faz
minha cabeça girar mais rápido que o vinil do Kl Jay, o meu coração acelera...
Se for para sofrer, que seja de felicidade...
Começou,
a espera acabou e o som se fez presente, o cuidado estético é nítido, eles
estavam de figurino, existia uma unidade (todos com algum elemento laranja), o
cuidado com essa apresentação era percebido, merecido e necessário... Todos
sabiam o que estava envolvido.
Eles
estavam calmos, maduros, conscientes, mais racionais que nunca. Tinha ali menos
fígado e mais coração, cérebro, amor.
O
coro-time que acompanhava o corifeu-Racionais-Mano Brown, estava afinado,
atento, inteligente, as pequenas encenações experimentadas há anos em show
aconteceram desta vez com uma potência nunca antes alcançada, sem esforço,
quase que naturalmente, surpreendente e eficaz esteticamente. Como exemplo,
podemos citar: a hora em que se debruçam em coro, sobre um fictício plano de
assalto na música “Eu sou 157”; na arrepiante hora em que todos, com a
introdução da música “Mil faces de um homem leal” ao fundo, cortam o ar com os
punhos cerrados levantados em direção ao céu, em analogia ao gesto feito pelos
Panteras Negras; no momento em que após a música “Diário de um detento”, todos
fogem de uma tempestade de tiros, deixando o palco vazio, em analogia direta,
simbólica, portanto metafórica, ao próprio massacre ocorrido no Carandiru, como
aos recentes extermínios ocorridos nas favelas do estado de São Paulo. Outro
momento surpreendente e potente como simbologia, como discurso, como ação, foi
aquele em que começaram a alçar do público crianças, em suas maiorias brancas,
que estavam na área reservada para a imprensa e para convidados, e a colocá-las
no palco, ao som de “A vida é desafio”... Foi de uma poesia, de uma delicadeza,
de uma potência arrebatadora a imagem que foi criada: aquele monte de negros
(tinha ao menos uns vinte no palco), cantando essa música (quem conhece sabe o
quanto é linda), com aquele monte de crianças dançando...
Todos
esses elementos juntos em sua máxima potência: a qualidade poética das músicas,
das batidas, das rimas, a qualidade técnica do som (estava bem equalizado, nem
alto nem baixo, dava para entender tudo que estava sendo dito), coroados com a
esclarecida, sorridente, bem humorada, lúcida, madura e amorosa reflexão do
Mano Brown, acerca dos acontecimentos violentos da Virada na noite anterior ao
show e da atual situação política do Brasil, fizeram com que essa apresentação,
esse retorno à Ágora, fosse o mais potente acontecimento artístico-político já
visto por mim desde os tempos de menino... Esse amor fica evidente na fala
emitida por Brown no show: “Olha que multidão, ó que exército, agora imagina
só, por mais que a gente veja milhares, milhares, não pode faltar ninguém na
volta. A falta de um é a falta de milhões. Não pode faltar ninguém na volta
hoje, certo? Ninguém!!!”. Em seguida cantam “Vida Loka – Parte 2” para encerrar
a apresentação e empurrar delicadamente as minhas lágrimas que ainda estavam
agarradas em meus cílios.
Após
o encerramento, ando tonto pelas ruas da cidade, sem rumo, com lágrimas de
felicidade que dançam em meu rosto, acontecimento inédito para mim... Depois de
muito cambalear de alegria encontro três amigos: Milton Santos de Jesus,
Gabriel Longhitano e Larissa Alves, eles nunca haviam presenciado uma
apresentação dos Racionais, nem conhecem muito a obra, nos abraçamos chorando,
os quatro. Este encontro intensificou ainda mais o encanto da arte e do
ocorrido: se somou ao que vi, ouvi e senti uma outra beleza, uma beleza íntima,
compartilhada com gente que me conhecia, o meu sentimento saiu da observação e
virou ação, a coletividade se fez presente em mim. Ali, com eles, eu senti
alegria por estar vivo; pela existência dos Racionais e a existência deles na
minha vida; por ter estado ali; por ter encontrado meus amigos e por tê-los em
minha vida... Era evidentemente potente e transcendente o que aconteceu naquela
tarde de domingo, e nós, coletivamente, celebramos esse acontecimento.
*Referência ao texto de
Walter Benjamin intitulado: “Baudelaire: Um lírico no auge do capitalismo”.
Jé
Oliveira.
Jé
Oliveira é negro, criado na periferia de Mauá, mais especificamente no Zaíra 2.
Está graduando-se em Ciências Sociais pela USP - Universidade de São Paulo.
É
ator, dramaturgo e diretor do Coletivo Negro, grupo de pesquisa
cênico-poético-racial.
Que belo texto... carregado de emoção, que se refere a um grupo que leva a Razão no seu nome, mas que inflama de energia qualquer periférico, haja visto o próprio autor...
ResponderExcluirCaralho Jé, que sensibilidade irmão!
Muito bom o tratamento generoso que ofereceu à aquele momento, e é isso, apresentação de Racionais é sempre especial, unica, avassaladora, inovadora, sempre com um recheio de uma verdade daquilo que todos vêem no mundo, mas não enxergam.
Racionais continua unico!
Racionais continua promovendo encontros de conhecidos que nunca se viram antes, como voce mesmo comentou!
Voce é parte dos Racionais!
Eu sou parte dos Racionais!
As periferias nao sao parte dos Racionas, as periferias sao o Racionais todo!
Longa vida aos Racionais!
Nossa Petrus, que satisfação em ler suas palavras. É isso, somos parte dos mais de 50.000 manos que compartilham de um mesmo sentimento. Somos parte e somos todo, somos...
ResponderExcluirObrigado pelo carinho e interesse por essas humildes palavras.
Abraços.
Jé Oliveira.