Críticas



Coletivo Negro: Teatro de Verdade

Por Luiz Eduardo Frin

Em cena, o filho interpela o pai por ele ter abandonado a família. A voz do filho é a voz do ator, a do pai: os acordes de uma guitarra. Esse é apenas um dos exemplos, talvez o mais pungente, de como o Coletivo Negro imbricou texto, cena e música na construção dramatúrgica de {ENTRE}, apresentado na noite de 08 de setembro no Festa 57.

O espetáculo, que é uma peça de teatro, um show, um baile, ou um encontro no qual dois amigos tomam um café, mescla narrativas distintas em enredo que, mesmo constituído sobre diferentes histórias e diferentes estéticas, prima pela unidade.

Para isso, foi extremamente feliz a opção de situar a ação em um conjunto habitacional. As portas de apartamentos vizinhos do cenário são abertas, fechadas, unidas, derrubadas e até desmaterializadas simbolicamente durante a encenação. Assim, fica claro que, no contexto apresentado, as fronteiras são difusas. As falas, as brigas, as lutas transpassam paredes-meias e atestam que a história de um, é a de todos.

E que história é essa? É a dos que lutam para romper pressupostos definidos antes do próprio nascimento. Dos que lutam para nascer de verdade e ser senhores dos seus destinos. O Coletivo Negro se define como “grupo de afro-descentes comprometidos com a investigação cênico-poética do imaginário construído em relação ao negro brasileiro”. Agora, como se não bastasse trabalhar artisticamente de maneira tão inspirada questões de fundo étnico-racial, o grupo vai além ao abrir um caleidoscópio imagético, sensorial e reflexivo que toca a todos que, de alguma maneira, percebem-se cerceados por estruturas sociais cristalizadas que prejulgam, qualificam, estereotipam... Matam. Simbólica e realmente.

{ENTRE} é um daqueles felizes exemplos que a crítica a aspectos técnicos da encenação é, absolutamente, irrelevante. Isso por que, ali, o show foi só um pretexto para que as portas, as couraças endurecidas daqueles que, como na música: “não vivem, apenas aguentam”, se abrissem para a comunhão de sentimentos, angústias, alegrias e reflexões. Compartilhamento capaz de transformar vidas... E isso é teatro.



Sobre a existência pisada ou a palavra como rito no Coletivo Negro 
Por Rudinei Borges.


Em raptos de um escrito tardio, voz que adentra a madrugada, é que recordo – meses depois – uma travessia, do centro antigo de São Paulo até a Penha, onde vi {Entre}, a última montagem cênica do Coletivo Negro. Mas a travessia volveu-se em mim, como quem desvia do espelho o olhar e, mesmo assim, termina por enxergar vertigens de uma existência pisada.

A obra dirigida por Aysha Nascimento e Raphael Garcia, em sendas estreitas, com dramaturgia de Jé Oliveira, concatena a palavra como deformação ao adentrar a completude do poema como quem procurasse o eco. Dizer não é suficiente. É preciso acolher partes, excertos. A derivação da palavra inaugural é o que interessa, ato de investigação do sussurro e do berro – em microfones, caixa de sons.

Já no movimento hip hop, a poesia é vertida nesta busca pelos inúmeros significados da palavra e, mais ainda, nas muitas possibilidades da palavra falada e cantada. Aliás, são estas probabilidades que vertem o movimento em dança e injetam em {Entre} elementos da ritualística afro-brasileira. Neste sentido, não nos causa nenhum estranhamento que a peça seja acompanhada por uma banda, formada pelos músicos Fernando Alabê e Cássio Martins, que utiliza de instrumentos musicais eletrônicos a marimbas – algo que evoca alguma ancestralidade. O que é mais peculiar em {Entre} é a ritualização da palavra.

Outros grupos brasileiros de teatro têm investido nesta pesquisa de ritualização da palavra, tendo como referencial o movimento hip hop. Este é o caso do Núcleo Bartolomeu de Depoimentos que tem realizado trabalhos de alcance ímpar a partir da dramaturgia de Claudia Shapira, poeta das mais inventivas de nossa atualidade.

No Coletivo Negro, é notável este processo desde a montagem de Movimento número 1: o silêncio de depois… com dramaturgia de Jé Oliveira. Por meio da ritualização da palavra, Oliveira investe na transgressão da narrativa para contar histórias de prélio e coragem. Do negro brasileiro, sobretudo. Com isso, tem realizado um trabalho de criação dramatúrgica dos mais relevantes no cenário teatral paulistano.
O eixo temático da peça, a existência pisada que {Entre} desvela, está calcado na esforçosa missão de compreender o esfacelamento da família negra. Todavia, há algo consideravelmente desafiador que é a investigação dos corpos acumulados, deglutidos em um espaço comum. A precariedade do espaço de habitação e a precariedade das relações chama a atenção.

Nada é mais deflagrador da miserabilidade humana que o rosto derruído daquele pai, interpretado por Jefferson Matias, abrindo e fechando portas, como um Joseph K. que, em O castelo de Franz Kafka, não chega a lugar nenhum. Ou o olhar perdido do médico prodígio, interpretado por Flávio Rodrigues. Este ator impetra, numa dança com as palavras, certo estado de desesperança que traduz o que há de mais sofrido no itinerário e lida de nossa gente.

A peça ganha – e muito – com o trabalho audaz de Thaís Dias, em sentidos vários. Thaís, vestida por uma indumentária branca, ritualiza a palavra, o corpo e a cena numa investidura interpretativa que leva a cena ao alcance de significados multiformes, espécie de Pietá (piedade) negra, Nossa Senhora revolucionária que empresta à montagem algo da valentia feminina. A mulher grávida e abandonada interpretada por Thaís aparece como referência da vida da mulher negra no Brasil. No entanto, a mulher vivida pela atriz não sucumbe às ferocidades, pondo-se em pé na peleja por uma existência digna. Fico a pensar em quão arrebatador será o trabalho desta atriz, uma vez alcançando a maturidade.

Há muitas questões de caráter sociológico evocadas em {Entre}. Nota-se o anseio por avistar os fenômenos sociais que as famílias negras defrontam nas cidades, sobretudo. Porém, mais que uma peça-protesto, {Entre} é uma obra revigoradora, uma vez que não abandona a subjetividade dos seres. Não os põe como parte uniforme da multidão, ao contrário. A peça elucida o trucidamento psicológico do ser humano negro num país de contrastes sociais aterradores de um modo pouco visto num teatro que se pretende político.

{Entre} configura espécie de auto de natal, em que a espera pelo nascimento alude também ao anúncio da chegada de um tempo de esperanças. Fez-me lembrar certaMorte e Vida Severina protagonizada por atores negros. Os personagens de {Entre} rememoram a travessia árdua daquele Severino retirante do poema de João Cabral de Melo Neto.
Fez-me recordar também da Missa dos Quilombos. A celebração criada por Dom Pedro Casaldáliga e Pedro Tierra, com música de Milton Nascimento, aconteceu no dia 20 de novembro de 1981 em Recife (PE). Com participação de público de 8 mil pessoas, a missa denunciou os males da escravidão e do racismo.

{Entre} alcança a poesia dos sonhos que são perdidos dia a dia no turbilhão das cidades de um modo vivificador em encenação, como se pusesse um espelho dentro da mente e do coração dos anti-heróis que protagonizam a peça. Diante dos cegos, este espelho reflete, em fractais, sussurros de vidas que bradam por ser vividas com alguma plenitude. Um trabalho de fôlego.

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Rudinei Borges – Poeta, dramaturgo e ficcionista. Autor dos livros “Chão de terra batida” (poesia), “Dentro é lugar longe” (dramaturgia) e “Teatro no ônibus” (pesquisa). Mestre em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP). Formou-se em Filosofia. Ator e diretor do Núcleo Macabéa. Editor da Alzira Re(vista). Nasceu em Itaituba, Pará.



Algumas reflexões da professora Dra. Iná Camargo Costa, na ocasião da pré-estreia, ocorrida dia 14 de julho de 2011, do espetáculo do Coletivo Negro: “Movimento Número 1: O Silêncio de Depois...”.
Quando o Jé me pediu pra vir aqui, ele queria que eu desse uma de professora, coisa que eu não sou mais. Eu falei que eu não ia falar do Abdias e do Teatro Experimental do Negro mas só comentar o que vocês apresentassem. E acho que vocês já falaram dele, não sei com que grau de consciência. Aquela entrada do Jefferson Matias é uma referência a ele, quando disse que se trata de pegar a tecnologia dos brancos e fazer reverter a nosso favor. Mas ao mesmo tempo é uma colocação irônica, porque o enunciador da questão acredita em progresso, mas a cena mostra que é uma crença irônica, porque também mostra progresso como um trator vindo pra cima de nós. Em todo caso, aqui tem uma reflexão a fazer sobre o Abdias.
Quando o Abdias propôs o Teatro Experimental do Negro, ele de fato achava que era o caso de usar essa instituição branca falida, o teatro burguês convencional, para examinar a problemática do negro no Brasil. E sua trajetória enfrentou muitos paradoxos.
Esses paradoxos precisam ser examinados, porém no seu direito. Para vocês terem ideia, uma das primeiras pessoas perseguidas pela ditadura instalada no Brasil em 64, foi o Abdias do Nascimento. Então vejam: a nossa sociedade tem um nível insuportável, até hoje (imagine na década de 40!), de racismo e de ódio a tudo o que coloque a simples presença do negro em cena. Qualquer que seja ela. É uma coisa tão aterrorizante porque a nossa classe dominante sabe os crimes que cometeu desde o início do tráfico e não quer pagar essa conta, muito menos receber a fatura. Não vai fazer isso por bem!
A tentativa do Abdias de fazer um teatro convencional em palco italiano, com peça escrita por Nelson Rodrigues (ele mesmo um racista), por exemplo, é um dos pontos problemáticos da História.
Mas o simples fato dele ter tentado organizar os negros em elenco teatral, com todas as implicações sociais e políticas que isso tinha na época (e continua tendo), foi o suficiente para colocar o nosso Abdias do Nascimento na lista negra dos primeiros a serem perseguidos pela ditadura. O outro lado dessa questão está examinado no trabalho de vocês. Não se trata de encenar o Anjo Negro, mas talvez a peça da qual o Anjo Negro provém mereça uma reflexão, um estudo. É uma peça do Eugene O’Neill, que se chama Todos os Filhos de Deus têm Asas. Esta peça sim, examina as contradições de uma sociedade racista como a americana de um ponto de vista crítico à sociedade capitalista que se construiu pela exploração do trabalho dos negros escravizados. E isso não tem na peça de Nelson Rodrigues, porque ele normalmente estraga o material com que trabalha.
O’Neill faz um estudo das contradições entre brancos e negros nos Estados Unidos de um ponto de vista anti-racista e expõe a conta que se apresenta para o branco também. Porque O’Neill era socialista.
O trabalho de vocês tem um cuidado especial com as vozes, no sentido de polifonia. São vozes que expõem diferentes aspectos da experiência de negros que viveram ao longo do século XX. São todas experiências do século XX especificamente, embora tenha referência ao Zumbi, que é de luta e resistência. Este trabalho, já pela forma, rejeita aquela tradição à qual o Abdias queria se integrar, aquela tradição européia, ocidental, branca, que rejeitou o TEN (Teatro Experimental do Negro), que não conseguiu sobreviver por muito tempo. Acho que já em 64 ele praticamente já não existia mais. Ele teve pouco tempo de atuação.
Ao escolher esse formato de roda e o formato dos depoimentos, as diferentes vozes, com um Griô que coordena e produz essa costura de vozes, acho que vocês já deram um grande salto na busca de respostas aos desafios que estão postos para negros que querem fazer teatro.
Vocês já responderam à primeira pergunta da maneira mais acertada: “o teatro que nós vamos fazer se chama teatro, sem dúvida mas, para começo de conversa, nós queremos a roda”.
No texto do programa vocês dizem também que desenvolveram a questão da não-hierarquia. “Não queremos hierarquia”, está dito. E cumpriram rigorosamente a promessa: não estabeleceram hierarquia na cena, nem entre cena e interlocutores.  Acho que isso é um acerto. Gol de placa, mesmo.
Um ponto interessante, para mim, é que a matéria que vocês colocam em cena está presente nos trabalhos que eu tenho visto nos últimos 5 ou 8 anos. E tem um recorte racial, mas ele é, antes de mais nada, social. Para mim, isso é um avanço.
A organização do material mostra a crítica pesada que precisa ser feita, não apenas às misérias que foram feitas pela sociedade “branca” desde a época dos navios tumbeiros, mas às misérias que continuam sendo feitas, pois elas têm que acabar.
Na história da sambista que adere à perspectiva da ascensão social via relações inter-raciais e, depois que “chega lá”, descobre que a sua comunidade foi destruída, está cifrada uma importante chave crítica do trabalho como um todo. Além do desastre pessoal isso implicou para ela, o seu caso leva a uma série de perguntas que estão enunciadas. O núcleo temático aqui é a ideia de progresso (e ascensão social), por isso eu destaquei o personagem Bêbado, que começa falando na hipótese de se aproveitar do progresso. Para além da caracterização do bêbado, que já diz muito, a peça acaba mostrando que, do ponto de vista negro, até agora progresso só significou crime.
Tirar conclusões a partir deste ponto a que chegou a peça, é tarefa que cabe a nós que assistimos a esses depoimentos.
Não vou tratar de questões técnicas, que sobre elas vocês próprios podem falar melhor do que eu. Achei tudo muito legal.
E não sei se vocês sabem, mas eu sou da fé de Xangô, e achei o máximo a pipa ter os machados, que representam a justiça deste orixá. Essas imagens – pipa (que sobe) com oxés – compõem uma idéia dá o que pensar (e pela qual vale a pena lutar).


 

A qualidade e o lugar da presença (por Valmir Santos)




 Um grupo que saúda na mesma noite Abdias do Nascimento e Timochenco Wehbi já diz a que veio sobre os assentamentos históricos e sociais da arte que abraça. Nascimento foi cofundador do Teatro Experimental do Negro (TPN), projeto artístico pioneiro realizado no Rio de Janeiro entre 1944 e 1961, com reflexos em muitos pontos do país. Já a dramaturgia do prudentino Wehbi, sociólogo cuja densidade das peças não ofusca uma poética libertária via imaginário, caso de Palhaços. Pois o Coletivo Negro, de Mauá, na Grande São Paulo, evoca a causa antirracista como coração do texto enquanto agrega ao corpo em cena/da cena procedimentos de uma intervenção plena em plasticidades e sonoridades.

 Na espiral de tempo de "Movimento Número 1: O Silêncio de Depois...", o presente, o passado e o futuro são embaralhados em narrativa conduzida por uma voz ancestral africana, pela atriz Thais Dias, também ela uma “Antiga”, como se diz na peça em relação de respeito aos antepassados. A criação vigorosa alinha manifestações do canto, da palavra e da dança, aos quais valeria acrescentar o olhar magnetizante. A dramaturgia concebida coletivamente, sob texto final de Jé Oliveira, costura os percursos biográficos de uma mulher e dois homens. Esses três cidadãos foram extraídos de seu território de origem, em suma, por fatores como a truculência de agentes públicos, a ilusão amorosa e a falácia economicista do progresso – leia-se especulação do mercado imobiliário.

Alternam-se os planos ficcionais e documentais. Um filho rememora a consciência crítica do pai, uma das lideranças resistentes da comunidade (pelo ator Jefferson Matias). Cansada da relação corpo-objeto, uma mulher se enamora de um estrangeiro e vai experimentar ser ela mesma, na pele e na alma, em outro país (por Aysha Nascimento). Um terceiro rapaz conta como a liberdade de soltar pipas na infância foi ceifada pela ação violenta de uma desocupação (por Raphael Garcia).

 Suas histórias são literalmente atravessadas, vez ou outra, pelos solavancos do trem que desliza pelos dormentes e faz menção a uma área desapropriada que virou estrada de ferro e provocou a remoção de muitas famílias. 

 Os atores desses fragmentos biográficos deixam transparecer o fio do tempo por meio da gestualidade, dos adereços, objetos e figurinos. Os espectadores estão postados rente à cena, numa arena adepta da tradição oral africana de narrar e transmitir saberes ao pé do ouvido. Na apresentação no Sesc Thermas, esse vínculo intimista foi ampliado para arquibancadas complementares e o elenco deu conta de manter a ligação.

O espaço cenográfico envolve bancos de madeira e três nichos/oratórios dos respectivos personagens, demarcados por luzes azul, vermelha e branca (por Julio Dojcsar>casadalapa e Wagner Antônio). A música ao vivo flui como coadjuvante e protagonista nas pulsações rítmicas e ritualísticas (cordas e percussão por Fernanda Camilo e Kauê Palazolli).    

 São poucos, mas sobressalentes, os momentos em que as falas pendem para o discurso de vitimização, desequilibrando uma obra ademais bem sustentada em seu conjunto em termos de incisão e delicadeza. A fala-manifesto indignada soa mensagem encerrada em si. Não interpõe, constata. Diferente dos demais aspectos formais do espetáculo, a começar pela qualidade da presença dos atores.

 Natural a veemência do discurso nessa que é a primeira montagem do Coletivo Negro (daí o Movimento Número 1 do título). O trabalho dialoga com outros pares da produção brasileira que possivelmente também transbordaram no tom de manifesto na largada e, aos poucos, foram alargando os horizontes de elaboração, resultando artisticamente mais categóricos. Citamos o núcleo baiano Bando do Teatro Olodum, com o recente Bença. E os paulistas Clariô, com Hospital da Gente; Os Crespos, com Ensaio sobre Carolina; Núcleo Bartolomeu de Depoimentos, com Orfeu Mestiço – Uma Hip-Hópera Brasileira; entre outros.

 O Coletivo Negro já usufrui clareza quanto ao lugar da arte do qual fala, toca e deseja ser ouvido. E traz em seu ventre a percepção essencial de que a indignação pode ser comunicada por meio de outros silêncios, sonoridades e respiros, calando fundo e resistindo à pulverização das utopias.
Fonte: Assessoria de Impressa FENTEPP 



O saber do corpo

por Luciana Romagnolli

Para a 8ª Mostra Cena Breve, o Coletivo Negro destacou uma cena de seu espetáculo "Movimento Número 1: O Silêncio de Depois", em que três personagens narram seus embates com a cultura branca dominante, cujo ápice do confronto ocorre durante a desapropriação de suas casas para a construção de uma linha de trem. "Linha Cortante", a cena conduzida pelo ator Raphael Garcia e apresentada em Curitiba, propõe desde o título uma metáfora entre a pipa do garoto que cortava livre o ar e a passagem do trem, que cruzará o território rasgando a organização familiar e comunitária e deixando mortos no caminho.

O episódio revela desdobramentos das duas diásporas negras - a primeira, causada pelo tráfico de escravos vindos da África; a segunda, uma mobilidade até certo ponto voluntária, após o fim do regime escravocrata. Com a desapropriação narrada, o Coletivo Negro aponta para a dissolução dos laços de pertencimento imposta ao povo negro, seja em relação à terra ou aos antepassados. O que morre, com a avó do garoto, é parte de um saber transmitido não pela escrita, mas pelo corpo (a oralidade, a dança, o movimento, a música, a pintura etc).

Um saber vinculado à performance, que a atriz Thais Dias faz reconhecer com sua presença, intensificada nos olhares penetrantes, na caracterização e na expressão corporal. Ela personifica a ancestralidade africana associada às forças da natureza (e é emblemático que sejam suas mãos o vento a tremular a pipa). Cria-se, assim, o contraste entre sua figura e a de Raphael Garcia, cuja fala e gestualidade carregam uma concepção já "abrasileirada" de corpo e cultura, mas cujo destino é afetado pelas diferenças raciais dentro do país.

O posicionamento crítico do grupo paulistano se manifesta discursivamente nas memórias narradas pelo personagem do menino quando adulto, num sobrepor de tempos que atesta o fim da inocência, mas se alastra sobretudo pelas imagens, gestualidades, objetos, músicas e ruídos, que estabelecem a teatralidade. A afetação produzida pelo Coletivo Negro se quer intimista, um a um, por contatos visuais em busca de identificação, vínculo, atravessamento. Por isso, seu público ideal está sentado ao redor, muito próximo, e é sensorialmente afligido pela presença dos atores e músicos. Na Mostra Cena Breve, o teatro de palco italiano, frontal, impediu essa configuração do espaço, apenas parcialmente solucionada com assentos improvisados para uma mínima parcela dos espectadores formarem o círculo dentro do qual a cena é performada.







 


(Salloma Sallomão)


Coletivo Negro enriquece a cena cultural brasileira 


Coletivo Negro- O silêncio de depois.

Para assistir a peça “Movimento numero1: O silêncio de depois” produzida pelo Coletivo Negro, no Auditório do SESI,  eu e minha família enfrentamos uma saga, mas chegamos na ponta sudeste da cidade. A Vila das Merces, na geografia de São Paulo, fica entre as vias Anchieta e Imigrantes. Tenho me dado a esse luxo, sorver teatro, música, dança e cinema a preços baixos ou gratuitos no centro ou nos arredores da cidade e ianda vou com todas as mulheres. Vejam que nem tudo aqui é anomia, caos ou desgoverno.

No meio do caminho pra lá, ja perto da Casa de Cultura Chico Science tristemente semi-abandonada, parelhei o carro ao lado de outro estacionado em uma praça, queria pedir informação. O motorista se assustou, tive medo, um casal jovem e negro namorava. Caso fosse um policial neurótico sem raça-cor e coldre cheio, poderia ter sido facilmente alvejado por disparos. A "corporação", para proteger o seu, faria o resto do serviço: montagem de cena de confronto com pcc, armas nos corpos, testemunhas oculares seduzidas pelo medo e uma matéria tosca e incriminadora  veiculada na baixa imprensa servil. "Sim ele tinha passagem". Seriamos números do SEADE. Quem se importaria?



 Calma!!!!! Esse não é um pequeno artigo sobre o viver negro em São Paulo durante a guerra entre as milícias e as gangues. É apenas um breve relato sobre um fragmento da Cena Cultural Negra em São Paulo. Quero dizer que, meu texto pode ser lido como se nada tivesse a ver com racismo violência e outras coisas desagradáveis ao público consumidor do entretenimento.

O COLETIVO NEGRO,  é um grupo de teatro composto por talentosos jovens negros (parece redundante, mas há teatro negro sem negros) cujo tempo de existência trajetoria mais detalhada desconheço. Formado por Aysha Nascimento, Flávio Rodrigues, Jefferson Matias, Jé Oliveira, Raphael Garcia e Thaís Dias.
A peça do Coletivo Negro: “Movimento Número 1: O Silêncio de Depois...”, foi a materialização cênica do projeto de pesquisa cênico-poético-racial intitulado: “Quilombos Urbanos”, investigação essa que foi contemplada pelo governo do Estado de São Paulo, por meio do PROAC (Programa de Ação Cultural) em 2010 e teve em sua configuração a visita e troca de conhecimentos entre o Coletivo Negro e o quilombo Ivaporunduva.” http://coletivonegro.blogspot.com.br/p/o-silencio-de-depois.
Um pequeno, convencional e confortável Teatro de bairro, como eram antigamente o Paulo Eiró e Martins Pena. Ou ao menos foi assim que os vi, ao fim do governo Erundina. O ambiente bacana, sem tensão, muita gente igualmente amável, pouco público. O formato arena foi criado apenas com disposição de duas fileiras de bancadas para o público se sentar bem próximo, encima  do palco. Cenário, luz e figurino módicos e atuação monstro, texto idem. Ficamos bem perto dos atores, praticamente em contato físico com eles, creio que não por acaso.
O diretor e o escritor do texto estavam em cena, mas Jê Oliveira apenas operava o computador que emitia os sons gravados, ruídos do trem. Considerando o frescor dos anos, mano!!!!! O Jê Oliveira escreve bem pra caramba (me disseram que o texto é dele!!!, mas no material de divulgação não se faz menção). Alguns grupos tem a estratégia de diluir o protagonismo, talvez para reforçar o espírito associativo e não fomentar egos facilmente infláveis.
“Em  2007, após a montagem do experimento cênico  ‘Um longo caminho que vai de Zero à Ene’, de Timochenko Wehbi, dentro do curso de direção da Escola Livre de Teatro de Santo André. Jé Oliveira, diretor da experimentação, começa a fomentar junto com os então artistas-aprendizes. A possibilidade de aprofundar a pesquisa que tinham realizado para aquele trabalho, cujo pano de fundo era a invisibilidade social.” Idem blog Coletivo Negro.
Essa linguagem, dramaturgia, pra mim é um mistério, por isso meu fascínio, não sei como orquestrar vozes, corpos, textos, luz, objetos, tudo para veicular algo coerente. O que mais me encanta nessa cena é perceber que se trata é uma juventude negra muito melhor que a minha. Melhor tecnicamente, melhor artisticamente, melhor politicamente, embora alguns dilemas e cacoetes da negritude das décadas passadas se repitam, insistentemente.
Então vamos lá: O texto nem sempre desliza, mas não confunde nem cai, se sustenta, segue e vai e no fim emociona mesmo. Difícil articular poeticamente cinco vozes dissonantes e complementares, vozes negras arquetípicas. Voz- África mãe e terra/memória, Voz-mulher negra/ventre livre, Voz-homem negro-traidor pai João, Voz- homem negro-heroi Zumbi=rebeldia, Voz-Instrumentos/contrabaixo/tambores e canto.
O texto que é então uma polifonia começou a ser destrinchado ainda na porta, durante a entrada do público. “O Silêncio depois”, nos quatro pontos do espaço cênico quatro vozes coesas, uma bem forte, feminina, grave, majestosa e máscula. Quem suportava essa voz? Sua dona era uma mulher, quase recém menina,  com cara de lua nova, envelhecida pela personagem A Antiga, ou África mãe.
Tratar a História não contada como corpos insepultos, nos remete a Walter Benjamim na tradição ocidental e em cosmovisões bantus. Os defuntos sempre perturbam ou ajudam os vivos.  O tempo inteiro são os mortos que destilam as varias faces do racismo anti-negro. A aguardente na nossa boca, prenuncio da overdose etílica, quando pode vira vômito na cara da sociedade. Quem tá disposto a isso? Sentar e ouvir tim-tim por tim-tim o “Negro Drama”? Mas o texto não é sobre a dor da inconsciência negra, mas do papel exercido pelos que se foram dessa concreta existência, “cemitério dos vivos", para a kalunga eterna, a água dos mortos. Veja: http://www.pucsp.br/ultimoandar/download/BrigidaMalandrino.pdf   
Não há linearidade no discurso, apenas previsibilidade no desfecho, embora sem fato histórico especifico. O pano de fundo é a linha de trem, que para ser instalada, precisa desalojar as precárias moradias e seus habitantes. Feliz alusão a tantos e infelizes desalojamentos de negros e pobres para  “passagem do progresso”, fato constante no Brasil desde o século XIX.
O desterro símbolo África, desterro sina Brasil contemporâneo, nós somos os estranhos de porta adentro, uma recorrência do processo de desenvolvimento econômico, exploração imobiliária e expansão urbana combinado com racismo ambiental (brancos no centro), fenômeno estudado por várias perspectivas. Raquel Rolnik, entre outros, foi pioneira no mapeamento e desvelamento desses processos. http://raquelrolnik.wordpress.com/1989/09/16/territorios-negros-nas-cidades-brasileiras-2/
A voz África mãe, corporificada na Atriz Thais Dias traz uma gestualidade que insinua afro dança, mas ela apenas indica comedidamente, é mimese e não coreografia. Esteticamente seria por demais óbvio, lugar comum nos grupos iniciantes, essa foi uma ótima solução. Cumpre duplo papel de narradora e personagem chave, sua construção é encantadora e compensa com sua performance, a luz e figurinos ultra-econômicos ou quase precários.
As vozes homens negros traidor e herói (têm pauta relativamente curta, cumprem o exercício no jogo da bipolaridade, símbolo de consciência X alienação, recriando os arquétipos mais rasos do enredo. Conquanto os atores sejam excelentes e façam uma exploração bem limpa do texto, projetam, performam, transpiram, se desdobram, mas comparativamente é pouco denso, têm pouco espaço de manobra, porque o texto não permite.                
Está também lá o arquétipo mulher negra, corpo-samba, libido-sexualidade. Ao mesmo tempo é ela a portadora da transgressão social do contato interétnico. Mas há tembém a interdição e a queda inexorável. Aqui a bipolaridade negra-branco se mantém também nos níveis mais elementares, nos enredos e desfechos construídos durante a década de 1970, que eu também não sei se superamos na vida real, muito menos na dramaturgia. N´so avançamos bastante na compreensão da diversiadde negra, mas ianda não estender isso a complexidade dos bancos. Que brancos são esses no Brasil? Perguntou um ilustre professor negro de Minas Gerais, em uma banca de mestrado na UERJ. A sua questão dizia respeito a necessidade de colocar no nosso repertório de perocuapações os estudos sobre as branquitudes. As noções branca de pertencimento. Fora Lia Vianer, chegaremos lá?   

Aysha Nascimento tem corporalidade delicadamente magra e quase fashion, a musculatura é torneada e de pouco volume. Não é alta, mas esguia e tem um timbre contralto de acento blues. Seu figurino é uma minissaia dourada de lantejoula e a blusa preta brilhante. Bem cavada nas costas, a roupa deixa à mostra sua musculatura, que vai dançando suave sob o decote. O batom leve no primeiro momento é depois borrado para destacar a arcada dentária de propaganda de creme dental. Seus ressaltados no quase choro é raivoso, mas impotente, algo muito diferente da maioria das mulheres negras na vida real. 
Essa voz feminina traz carga de uma persona de ficção e de algum realismo, pode ser ouvida e também lida  como síntese de certo romantismo feminino, que não ficou nas foto-novelas, nem nas revistas distribuídas massivamente em bancas de jornal (Grande Hotel), para um público cuja leitura prescindia do texto. Essa cultura de massa também construía idealização masculina, obviamente o macho-branco, escolarizado, possuidor de bens e possível facilitador de ascensão. É esse que a Rainha encontra e desmascara, mas invés de revê-lo, se revela. Ela a ingênua rainha do carnaval. Ainda simula a tipologia de Lima Barreto, Clara dos Anjos. É ela retinta e denegrida, mas decaída na quarta feira de cinzas, chorosa e enganada.
Há ressonância de um tipo especifico de discurso feminista-negro, cujo conteúdo pode revelar várias camadas de mudanças e permanências sociais e culturais na vida brasileira nas últimas décadas. Porém não é uma pesquisa de personagens históricos reais, não é sociologia do "problema Negro", sim criação de personagem-pretexto para uma narrativa cativante e bacana.
Duas vozes-homens e duas vozes-mulheres, umas vozes baixo-canto-batuques e uma cidade partida pela linha de trem, com casas à margem. Urbanidade é proximidade, fricção, tensão e solidão. A plataforma de lançamento dos contrastes entre os vários grupos de habitantes,  cidade é uma tendência inexorável desde Tombuctu e Genova do século XIV. Talvez desde lá, haja o fato da luta pela reversão da dominação macha e o avanço do fantasma da solidão avassaladora que cerca as mulheres em geral. Os machos são de aventura e guerra, nos bastamos a nós mesmo, porque ainda somos as medidas do mundo. Mesmo um macho negro, que fica na fila social-racial atrás das mulheres brancas, ainda rosna viril. Cuidado comigo eu tenho uma arma engatilhada.
Hoje há circulando entre nós, na cidade e no país, felizmente, uma infinidade de eventos, poemas, livros, canções e filmes produzidos nesses circuitos  que redefinem as alteridades e os possíveis afetos entre os seres humanos negros bem especificamente.  Muitos atravessam a “linha da cor” e arremessam brilhos regeneradores nos pontos mais salientes de nossas feridas e também tocam nossos irmãos e irmãs não negros, criam e estimulam novas formas de expressão e sociabilidade, convivência e civilidade.

Também há eventos e textos que pairam nas "regiões mais abissais do sentimento" de revanche, algumas vezes ainda veiculam discursos predominantes de hiper-masculinidade e de homofobia. Uns outros, embora oriundos de gente da pele negra, são bastante convencionais nos enredos e em alguns casos carregados de tinta individualista-consumista e disseminadores de misoginia. Vamos também silenciar sobre isso? Tem algum canto teatral para esse tema? 
Alguém dentre nós se mostra contente, esperançoso e entusiasmado quando os marqueteiros usam imagens de famílias convencionais (homem e mulher com duas crianças)  em propaganda de margarinas, supermercado, controle de natalidade, bolsa família, empréstimo consignado. Só, que  invés de brancos, colocam pessoas negras. Alguém pensa secretamente, agora podemos ser vistos. Algum amigo solidário, mas um pouco alienado pergunta: mas as coisas não estão melhorando?  
Até quando vamos, negros e brancos, nos esconder da discussão  sobre os relacionamentos inter-étnicos?  Até quando devemos aceitar que o debate fique nos limites dos parâmetros da Miscigenação Apaziguadora, ou do perigo da Diluição Racial dos Negros? Fora desse absolutismo étnico quase facista, como deixar de reconhecer e valorizar a presença dos euro-descendentes nas fileiras anti-racistas? 
Pode ser que a montagem cause algum choque aos brancos mais desavisados ou negros complacentes, porque o release apresentado pelo SESI sequer faz menção a questão racial.  Verdade seja dita: esses (as) jovens negros (as) criativos (as), corajosos (as) e organizados (as), constroem novos patamares para identificação coletiva dos descendentes de africanos no Brasil. Há nisso algo que os conecta as experiências do teatro Experimental vai Guerreiro Ramos e Abdias  do Negro e do Teatro Popular proposto pelo Solano. Digo sao fios delicados tecidos  no sentido de uma auto-educação política, social e cultural que viabilize nossa participação não subalterna nesta sociedade.
Eles e Elas do Coletivo Negro vão além de uma pedagogia sócio-cultural proposta nos anos 1940, posicionam a pesquisa estética como norte e mantêm preocupações políticas, mas ao que me pareceu, não abrem mão da reelaboaração, busca da beleza, da delicadeza e da solidariedade. Isso aparece no texto, na forma e no exemplo.


        Vamos ao teatro? O texto é lindo, nos instiga, desafia e estimula. Somos teatro e musica, letra e dança, somos vida, somos o quisermos, somos negros sim. Descendemos do Deus Áfrico, Nzambi nos fez.
Fonte: http://mosaiconegrobras.blogspot.com.br

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